Biografia de Allan Kardec

Minhas senhoras, meus senhores:
     Muitas pessoas que se interessam pelo Espiritismo manifestam muitas vezes o pesar de não possuírem senão muito imperfeito conhecimento da biografia de Allan Kardec, e de não saberem onde encontrar, sobre aquele a quem chamamos mestre, as informações que desejariam conhecer.
     Pois é para honrar Allan Kardec e festejar a sua memória que nos achamos hoje reunidos, e um mesmo sentimento de veneração e de reconhecimento faz vibrar todos os corações. Em respeito ao fundador da filosofia espírita, permiti-me, no intuito de tentar corresponder a tão legítimo desejo, que vos entretenha alguns momentos com esse mestre amado, cujos trabalhos são universalmente conhecidos e apreciados, e cuja vida íntima e laboriosa existência são apenas conjeturadas. 
Se fácil foi a todos os investigadores conscienciosos inteirarem-se do alto valor e do grande alcance da obra de Allan Kardec pela leitura atenta das suas produções, bem poucos puderam, pela ausência até hoje de elementos para isso, penetrar na vida do homem íntimo e segui-lo passo a passo no desempenho da sua tarefa, tão grande, tão gloriosa e tão bem preenchida.
    Não somente a biografia de Allan Kardec é pouco conhecida, senão que ainda está por ser escrita. A inveja e o ciúme semearam sobre ela os mais evidentes erros, as mais grosseiras e as mais impudentes calúnias.
    Vou, portanto, esforçar-me por mostrar-vos, com luz mais verdadeira, o grande iniciador de quem nos desvanecemos de ser discípulos.
    Todos sabeis que a nossa cidade se pode honrar, a justo título, de ter visto nascer entre seus muros esse pensador tão arrojado quão metódico, inserto em Reformador de abril de 1963, p. 95 e 96, intitulado Kardec e seu nome civil. esse filósofo sábio, clarividente e profundo, esse trabalhador obstinado cujo labor sacudiu o edifício religioso do Velho Mundo e preparou os novos fundamentos que deveriam servir de base à evolução e à renovação da nossa sociedade caduca, impelindo-a para um ideal mais são, mais elevado, para um adiantamento intelectual e moral seguros.
    Foi, com efeito, em Lyon, que, a 3 de outubro de 1804, nasceu de antiga família lionesa, com o nome de Rivail, aquele que devia mais tarde ilustrar o nome de Allan Kardec e conquistar para ele tantos títulos à nossa profunda simpatia, ao nosso filial reconhecimento.
    Eis aqui a esse respeito um documento positivo e oficial:
    “Aos 12 do vindemiário2 do ano XIII, auto do nascimento de Denizard Hippolyte-Léon Rivail, nascido ontem às 7 horas da noite, filho de Jean-Baptiste Antoine Rivail, magistrado, juiz, e Jeanne Duhamel, sua esposa, residentes em Lyon, rua Sala, no 76.
    O sexo da criança foi reconhecido como masculino.
    Testemunhas maiores:
    Syriaque-Frédéric Dittmar, diretor do estabelecimento das águas minerais da rua Sala, e Jean-François Targe, mesma rua Sala, à requisição do médico Pierre Radamel, rua Saint-Dominique, no 78.
    Feita a leitura, as testemunhas assinaram, assim como o Maire da região do Sul.
    O presidente do Tribunal.” (assinado): Mathiou
    O futuro fundador do Espiritismo recebeu desde o berço um nome querido e respeitado e todo um passado de virtudes, de honra, de probidade; grande número dos seus antepassados se tinham distinguido na advocacia e na magistratura, por seu talento, saber e escrupulosa probidade.
    Parecia que o jovem Rivail devia sonhar, também ele, com os louros e as glórias da sua família. Assim, porém, não foi, porque, desde o começo da sua juventude, ele se sentiu atraído para as Ciências e para a Filosofia.
    Rivail Denizard fez em Lyon os seus primeiros estudos e completou em seguida a sua bagagem escolar, em Yverdun (Suíça), com o célebre professor Pestalozzi, de quem cedo se tornou um dos mais eminentes discípulos, colaborador inteligente e dedicado. Aplicou-se, de todo o coração, à propaganda do sistema de educação que exerceu tão grande influência sobre a reforma dos estudos na França e na Alemanha. Muitíssimas vezes, quando Pestalozzi era chamado pelos governos, um pouco de  todos os lados, para fundar institutos semelhantes ao de Yverdun, confiava a Denizard Rivail o encargo de o substituir na direção da sua escola. O discípulo tornado mestre tinha, além de tudo, com os mais legítimos direitos, a capacidade requerida para dar boa conta da tarefa que lhe era confiada. Era bacharel em Letras e em Ciências e doutor em Medicina, tendo feito todos os estudos médicos e defendido brilhantemente sua tese.3 Linguista insigne, conhecia a fundo e falava corretamente o alemão, o inglês, o italiano e o espanhol; conhecia também o holandês, e podia facilmente exprimir-se nesta língua. Denizard Rivail era um alto e belo rapaz, de maneiras distintas, humor jovial na intimidade, bom e obsequioso. Tendo-o a conscrição incluído para o serviço militar, ele obteve isenção e, dois anos depois, veio fundar em Paris, à rua de Sèvres, no 35, um estabelecimento semelhante ao de Yverdun. Para essa empresa se associara a um dos seus tios, irmão de sua mãe, o qual era seu sócio capitalista. No mundo das letras e do ensino, que frequentava em Paris, Denizard Rivail encontrou a Srta. Amélie Boudet, professora com diploma de 1a classe. Pequena, mas bem-proporcionada, gentil e graciosa, rica por seus pais e filha única, inteligente e viva, ela soube por seu sorriso e predicados fazer-se notar pelo Sr. Rivail, em quem adivinhou, sob a franca e comunicativa alegria do homem amável, o pensador sábio e profundo, que aliava
grande dignidade à mais esmerada urbanidade.
     O registro civil nos informa que:
    “Amélie-Gabrielle Boudet, filha de Julien-Louis Boudet, proprietário e antigo tabelião, e de Julie-Louise Seigneat de Lacombe, nasceu em
 hiais (Sena), aos 2 do Frimário do ano IV (23 de novembro de 1795).” A Srta. Amélie Boudet tinha, pois, mais nove anos que o Sr. Rivail, mas na aparência dir-se-ia ter menos dez que ele, quando, em 6 de fevereiro de 1832, se firmou em Paris o contrato de casamento de Hippolyte- Léon-Denizard Rivail, diretor do Instituto Técnico à rua de Sèvres (Método de Pestalozzi), filho de Jean-Baptiste Antoine e senhora, Jeanne Duhamel, residentes em Château-du-Loir, com Amélie-Gabrielle  Boudet, filha de Julien-Louis e senhora Julie-Louise Seigneat de Lacombe, residentes em Paris, rua de Sèvres, no 35.
    O sócio do Sr. Rivail tinha a paixão do jogo; arruinou o sobrinho, perdendo grossas somas em Spa e em Aix-la-Chapelle. O Sr. Rivail requereu a liquidação do Instituto, de cuja partilha couberam 45.000 francos a cada um deles. Essa soma foi colocada pelo Sr. e Sra. Rivail em casa de um dos seus amigos íntimos, negociante, que fez maus negócios e cuja falência nada deixou aos credores.
    Longe de desanimar com esse duplo revés, o Sr. e Sra. Rivail lançaram- se corajosamente ao trabalho. Ele encontrou e pôde encarregar-se da contabilidade de três casas, que lhe produziam cerca de 7.000 francos por ano; e, terminado o seu dia, esse trabalhador infatigável escrevia à noite, ao serão, gramáticas, aritméticas, livros para estudos pedagógicos superiores; traduzia obras inglesas e alemãs e preparava todos os cursos de Levy-Alvarès, frequentados por discípulos de ambos os sexos do faubourg Saint-Germain. Organizou também em sua casa, à rua de Sèvres, cursos gratuitos de Química, Física, Astronomia e Anatomia comparada, de 1835 a 1840, e que eram muito frequentados.
    Membro de várias sociedades sábias, notadamente da Academia Real d’Arras, foi premiado, por concurso, em 1831, pela apresentação da sua notável memória: Qual o sistema de estudo mais em harmonia com as necessidades da época?
    Dentre as suas numerosas obras convém citar, por ordem cronológica:
    Plano apresentado para o melhoramento da instrução pública, em 1828; em 1829,4 segundo o método de Pestalozzi, ele publicou, para uso das mães de família e dos professores, o Curso prático e teórico de Aritmética; em 1831
 fez aparecer a Gramática francesa clássica; em 1846, o Manual dos exames para obtenção dos diplomas de capacidade, soluções racionais das questões e problemas de Aritmética e Geometria; em 1848 foi publicado o Catecismo gramatical da língua francesa; finalmente, em 1849, encontramos o Sr. Rivail professor no Liceu Polimático, regendo as cadeiras de Fisiologia, Astronomia, Química e Física. Em uma obra muito apreciada resume seus cursos, e depois publica: Ditados normais dos exames na Municipalidade e na Sorbonne; Ditados especiais sobre as dificuldades ortográficas.
      4 N.E.: Houve engano dos biógrafos. Não foi em 1829, mas em 1824.
    Tendo sido essas diversas obras adotadas pela Universidade de França, e vendendo-se abundantemente, pôde o Sr. Rivail conseguir, graças a elas e ao seu assíduo trabalho, uma modesta abastança. Como se pode julgar por esta muito rápida exposição, o Sr. Rivail estava admiravelmente preparado para a rude tarefa que ia ter que desempenhar e fazer triunfar.
    Seu nome era conhecido e respeitado, seus trabalhos justamente apreciados, muito antes que ele imortalizasse o nome de Allan Kardec. Prosseguindo em sua carreira pedagógica, o Sr. Rivail poderia viver feliz, honrado e tranquilo, estando a sua fortuna reconstruída pelo trabalho perseverante e pelo brilhante êxito que lhe havia coroado os esforços, mas a sua missão o chamava a uma tarefa mais onerosa, a uma obra maior, e, como teremos muitas vezes ocasião de o evidenciar, ele sempre se mostrou à altura da missão gloriosa que lhe estava reservada. Seus pendores, suas aspirações, tê-lo-iam impelido para o misticismo, mas a educação, o
juízo reto, a observação metódica, conservaram-no igualmente ao abrigo dos entusiasmos desarrazoados e das negações não justificadas.
    Foi em 1854 que o Sr. Rivail ouviu pela primeira vez falar nas mesas girantes, a princípio do Sr. Fortier, magnetizador, com o qual mantinha relações, em razão dos seus estudos sobre o Magnetismo. O Sr. Fortier lhe disse um dia: “Eis aqui uma coisa que é bem mais extraordinária: não somente se faz girar uma mesa, magnetizando-a, mas também se pode fazê-la falar. Interroga-se, e ela responde.”
    — Isso, replicou o Sr. Rivail — é uma outra questão; eu acreditarei quando vir e quando me tiverem provado que uma mesa tem cérebro para pensar, nervos para sentir, e que se pode tornar sonâmbula. Até lá, permita-me que não veja nisso senão uma fábula para provocar o sono.
    Tal era a princípio o estado de espírito do Sr. Rivail, tal o encontraremos muitas vezes, não negando coisa alguma por parti pris, mas pedindo provas e querendo ver e observar para crer; tais nos devemos mostrar sempre no estudo tão atraente das manifestações do Além.
    Até agora, não vos falei senão do Sr. Rivail, professor emérito, autor pedagógico de renome. Nessa época, porém, da sua vida, de 1854 a 1856, um novo horizonte se rasga para esse pensador profundo, para esse sagaz observador. Então o nome de Rivail se obumbra, para ceder o lugar ao de Allan Kardec, que a fama levará a todos os cantos do globo, que todos os ecos repetirão e que todos os nossos corações idolatram.
    Eis aqui como Allan Kardec nos revela as suas dúvidas, as suas hesitações e também a sua primeira iniciação:
    “Eu me encontrava, pois, no ciclo de um fato inexplicado, contrário, na aparência, às Leis da natureza e que minha razão repelia. Nada tinha ainda visto nem observado; as experiências feitas em presença de pessoas honradas e dignas de fé me firmavam na possibilidade do efeito puramente material, mas a ideia, de uma mesa falante, não me entrava ainda no cérebro.
    No ano seguinte — era no começo de 1855 — encontrei o Sr. Carlotti, um amigo de há vinte e cinco anos, que discorreu acerca desses fenômenos durante mais de uma hora, com o entusiasmo que ele punha em todas as ideias novas. O Sr. Carlotti era corso de origem, de natureza ardente e enérgica; eu tinha sempre distinguido nele as qualidades que caracterizam uma grande e bela alma, mas desconfiava da sua exaltação. Ele foi o primeiro a falar-me da intervenção dos Espíritos, e contou-me tantas coisas surpreendentes que, longe de me convencerem, aumentaram as minhas dúvidas. — Você um dia será dos nossos — disse-me ele. — Não digo que não — respondi-lhe eu —; veremos isso mais tarde.
    Daí a algum tempo, pelo mês de maio de 1855, estive, em casa da sonâmbula Sra. Roger, com o Sr. Fortier, seu magnetizador. Lá encontrei o Sr. Pâtier e a Sra. Plainemaison, que me falaram desses fenômenos no mesmo sentido que o Sr. Carlotti, mas noutro tom. O Sr. Pâtier era funcionário público, de certa idade, homem muito instruído, de caráter grave, frio e calmo; sua linguagem pausada, isenta de todo entusiasmo, produziu-me viva impressão, e, quando ele me convidou para assistir às experiências que se realizavam em casa da Sra. Plainemaison, rua Grange-Batelière, no 18, aceitei com solicitude. A entrevista foi marcada para a terça-feira5 de maio, às 8 horas da noite.
    Foi aí, pela primeira vez, que testemunhei o fenômeno das mesas girantes, que saltavam e corriam, e isso em condições tais que a dúvida não era possível. Aí vi também alguns ensaios muito imperfeitos de escrita mediúnica em uma ardósia com o auxílio de uma cesta. Minhas ideias estavam longe de se haver modificado, mas naquilo havia um fato que devia ter uma causa.
    5 N.T.: Esta data ficou em branco no manuscrito de Allan Kardec. Entrevi, sob essas aparentes futilidades e a espécie de divertimento que com esses fenômenos se fazia, alguma coisa de sério e como que a revelação de uma nova lei, que a mim mesmo prometi aprofundar.
    A ocasião se me ofereceu e pude observar mais atentamente do que tinha podido fazer. Em um dos serões da Sra. Plainemaison, fiz conhecimento com a família Baudin, que morava então à rua Rochechouart. O Sr. Baudin fez-me oferecimento no sentido de assistir às sessões hebdomadárias que se efetuavam em sua casa, e às quais eu fui, desde esse momento, muito assíduo.
    Foi aí que fiz os meus primeiros estudos sérios em Espiritismo, menos ainda por efeito de revelações que por observação. Apliquei a essa nova ciência, como até então o tinha feito, o método da experimentação; nunca formulei teorias preconcebidas; observava atentamente, comparava, deduzia as consequências; dos efeitos procurava remontar às causas pela dedução, pelo encadeamento lógico dos fatos, não admitindo como válida uma explicação, senão quando ela podia resolver todas as dificuldades da questão. Foi assim que sempre procedi em meus trabalhos anteriores, desde a idade de 15 a 16 anos. Compreendi, desde o princípio, a gravidade da exploração que ia empreender. Entrevi nesses fenômenos a chave do problema tão obscuro e tão controvertido do passado e do futuro, a solução do que havia procurado toda a minha vida; era, em uma palavra, uma completa revolução nas ideias e nas crenças; preciso, portanto, se fazia agir com circunspeção, e não levianamente; ser positivista, e não idealista, para me não deixar arrastar pelas ilusões.
    Um dos primeiros resultados das minhas observações foi que os Espíritos, não sendo senão as almas dos homens, não tinham nem a soberana sabedoria, nem a soberana ciência; que o seu saber era limitado ao grau do seu adiantamento, e que a sua opinião não tinha senão o valor de uma opinião pessoal. Esta verdade, reconhecida desde o começo, evitou-me o grave escolho de crer na sua infalibilidade e preservou-me de formular teorias prematuras sobre a opinião de um só ou de alguns.
    Só o fato da comunicação com os Espíritos, o que quer que eles pudessem dizer, provava a existência de um mundo invisível ambiente; era já um ponto capital, um imenso campo franqueado às nossas explorações, a chave de uma multidão de fenômenos inexplicados. O segundo ponto, não menos importante, era conhecer o estado desse mundo e seus costumes, se assim nos podemos exprimir. Cedo, observei que cada Espírito, em razão de sua posição pessoal e de seus conhecimentos, desvendava-me uma fase desse mundo, exatamente como se chega a conhecer o estado de um país interrogando os habitantes de todas as classes e condições, podendo cada qual nos ensinar alguma coisa e nenhum deles podendo, individualmente, ensinar-nos tudo. Cumpre ao observador formar o conjunto, com o auxílio dos documentos recolhidos de diferentes lados, colecionados, coordenados e confrontados entre si. Eu, pois, agi com os Espíritos como o teria feito com os homens: eles foram, para mim, desde o menor até o mais elevado, meios de colher informações, e não reveladores predestinados.”
    A estas informações, colhidas nas Obras póstumas de Allan Kardec, convém acrescentar que a princípio o Sr. Rivail, longe de ser um entusiasta dessas manifestações e absorvido por outras preocupações, esteve a ponto de as abandonar, o que talvez tivesse feito se não fossem as instantes solicitações dos Srs. Carlotti, René Taillandier, membro da Academia das Ciências, Tiedeman-Manthèse, Sardou, pai e filho, e Didier, editor, que acompanhavam havia cinco anos o estudo desses fenômenos e tinham reunido cinquenta cadernos de comunicações diversas, que não conseguiam pôr em ordem. Conhecendo as vastas e raras aptidões de síntese do Sr. Rivail, esses senhores lhe enviaram os cadernos, pedindo-lhe que deles tomasse conhecimento e os pusesse em termos —, os arranjasse. Este trabalho era árduo e exigia muito tempo, em virtude das lacunas e obscuridades dessas comunicações; e o sábio enciclopedista recusava-se a essa tarefa enfadonha e absorvente, em razão de outros trabalhos.
    Uma noite, seu Espírito protetor, Z., deu-lhe, por um médium, uma comunicação toda pessoal, na qual lhe dizia, entre outras coisas, tê-lo conhecido em uma precedente existência, quando, ao tempo dos Druidas, viviam juntos nas Gálias. Ele se chamava, então, Allan Kardec, e, como a amizade que lhe havia votado só fazia aumentar, prometia-lhe esse Espírito secundá-lo na tarefa muito importante a que ele era chamado, e que facilmente levaria a termo.
    O Sr. Rivail, pois, lançou-se à obra: tomou os cadernos, anotou-os com cuidado.        Após atenta leitura, suprimiu as repetições e pôs na respectiva ordem cada ditado, cada relatório de sessão; assinalou as lacunas a preencher, as obscuridades a aclarar, e preparou as perguntas necessárias para chegar a esse resultado.
    “Até então”, diz ele próprio, “as sessões em casa do Sr. Baudin não tinham nenhum fim determinado; propus-me, aí, fazer resolver os problemas que me interessavam sob o ponto de vista da Filosofia, da Psicologia e da natureza do mundo invisível. Comparecia a cada sessão com uma série de questões preparadas e metodicamente dispostas: eram respondidas com precisão, profundeza e de modo lógico. Desde esse momento as reuniões tiveram caráter muito diferente, e, entre os assistentes, encontravam-se pessoas sérias que tomaram vivo interesse pelo trabalho. Se me acontecia faltar, ficavam as sessões como que tolhidas, tendo as questões fúteis perdido o atrativo para o maior número. A princípio eu não tinha em vista senão a minha própria instrução; mais tarde, quando vi que tudo aquilo formava um conjunto e tomava as proporções de uma doutrina, tive o pensamento de o publicar, para instrução de todos. Foram essas mesmas questões que, sucessivamente desenvolvidas e completadas, fizeram a base de O livro dos espíritos.”
    Em 1856, o Sr. Rivail frequentou as reuniões espíritas que se realizavam à rua Tiquetonne, em casa do Sr. Roustan, com Mlle. Japhet, sonâmbula, que obtinha como médium comunicações muito interessantes, com o auxílio da cesta aguçada;6 fez examinar por esse médium as comunicações obtidas e postas precedentemente em ordem. Esse trabalho foi efetuado, a princípio, nas sessões ordinárias; mas a pedido dos Espíritos,
e para que fosse consagrado mais cuidado, mais atenção a esse exame, foi
continuado em sessões particulares.
    “Não me contentei com essa verificação”, diz ainda Allan Kardec,
    “que os Espíritos me haviam recomendado. Tendo-me as circunstâncias posto em relação com outros médiuns, toda vez que se oferecia ocasião, eu a aproveitava para propor algumas das questões que me pareciam mais melindrosas. Foi assim que mais de dez médiuns prestaram seu concurso a esse trabalho. E foi da comparação e da fusão de todas essas respostas, coordenadas, classificadas e muitas vezes refeitas no silêncio da meditação, que formei a primeira edição de O livro dos espíritos, a qual apareceu em 18 de abril de 1857.” Esse livro era em formato grande, in-4, em duas colunas, uma para as perguntas e outra, em frente, para as respostas. No momento de publicá-lo, o autor ficou muito embaraçado em resolver como o assinaria, se com o seu nome — Hippolyte-Léon-Denizard Rivail, ou com um pseudônimo.
6 N.T.: Arranjada em forma de bico.
    Sendo o seu nome muito conhecido do mundo científico, em virtude dos seus trabalhos anteriores, e podendo originar uma confusão, talvez mesmo prejudicar o êxito do empreendimento, ele adotou o alvitre de o assinar com o nome de Allan Kardec que, segundo lhe revelara o guia, ele tivera ao tempo dos Druidas.
    A obra alcançou tal êxito que a primeira edição foi logo esgotada.
    Allan Kardec reeditou-a em 18587 sob a forma atual in-12, revista, correta e consideravelmente aumentada. No dia 25 de março de 1856 estava Allan Kardec em seu gabinete de trabalho, em via de compulsar as comunicações e preparar O livro dos espíritos, quando ouviu ressoarem pancadas repetidas no tabique; procurou, sem descobrir, a causa disso, e em seguida tornou a pôr mãos à obra. Sua mulher, entrando cerca das 10 horas, ouviu os mesmos ruídos; procuraram, mas sem resultado, de onde podiam eles provir. Moravam, então, à rua dos Martyrs, no 8, no segundo andar, ao fundo.
    “No dia seguinte, sendo dia de sessões em casa do Sr. Baudin”, escreve Allan Kardec, “contei o fato e pedi a explicação dele.
    Pergunta: — Ouvistes o fato que acabo de narrar; podereis dizer-me
 causa dessas pancadas que se fizeram ouvir com tanta insistência?
    Resposta: — Era o teu Espírito familiar.
    P. — Com que fim, vinha ele bater assim?
    R. — Queria comunicar-se contigo.
    P. — Podereis dizer-me o que queria ele?
    R. — Podes perguntar a ele mesmo, porque está aqui.
    P. — Meu Espírito familiar, quem quer que sejais, agradeço-vos terdes vindo visitar-me. Quereis ter a bondade de dizer-me quem sois?
    R. — Para ti chamar-me-ei a Verdade, e todos os meses, durante um quarto de hora, estarei aqui, à tua disposição.
    P. — Ontem, quando batíeis, enquanto eu trabalhava, tínheis alguma coisa de particular a dizer-me?
    R. — O que eu tinha a dizer-te era sobre o trabalho que fazias; o que escrevias me desagradava e eu queria fazer-te parar.
    Nota – O que eu escrevia era precisamente relativo aos estudos que fazia sobre os Espíritos e suas manifestações.
    7 N.E.: A 2a edição foi impressa em 1860, e não 1858.
    P. — A vossa desaprovação versava sobre o capítulo que eu escrevia, ou sobre o conjunto do trabalho?
    R. — Sobre o capítulo de ontem: faço-te juiz dele. Torna a lê-lo esta noite; reconhecer-lhe-ás os erros e os corrigirás.
    P. — Eu mesmo não estava muito satisfeito com esse capítulo e o refiz hoje. Está melhor?
    R. — Está melhor, mas não muito bom. Lê da terceira à trigésima linha e reconhecerás um grave erro.
    P. — Rasguei o que tinha feito ontem.
    R. — Não importa. Essa inutilização não impede que subsista o erro. Relê e verás.
    P. — O nome de Verdade que tomais é uma alusão à verdade que procuro?
    R. — Talvez, ou, pelo menos, é um guia que te há de auxiliar e proteger.
    P. — Posso evocar-vos em minha casa?
    R. — Sim, para que eu te assista pelo pensamento; mas, quanto a respostas escritas em tua casa, não será tão cedo que as poderás obter.
    P. — Podereis vir mais frequentemente que todos os meses?
    R. — Sim, mas não prometo senão uma vez por mês, até nova ordem.
    P. — Animastes alguma personagem conhecida na Terra?
    R. — Disse-te que para ti eu era a Verdade, o que da tua parte devia importar discrição; não saberás mais que isto.” De volta a casa, Allan Kardec apressou-se a reler o que escrevera e pôde verificar o grave erro que com efeito havia cometido. A dilação de um mês, fixada para cada comunicação do Espírito Verdade, raramente foi observada. Ele se manifestou frequentemente a Allan Kardec, mas não em sua casa, onde durante cerca de um ano não pôde este receber nenhuma comunicação por médium algum e, cada vez que ele esperava obter alguma coisa, era obstado por uma causa qualquer e imprevista, que a isso se vinha opor. Foi a 30 de abril de 1856, em casa do Sr. Roustan, pela médium Mlle. Japhet, que Allan Kardec recebeu a primeira revelação da missão que tinha a desempenhar. Esse aviso, a princípio muito vago, foi precisado no dia 12 de junho de 1856, por intermédio de Mlle. Aline C., médium.
    A 6 de maio de 1857, a Sra. Cardonne, pela inspeção das linhas da mão de Allan Kardec, confirmou as duas comunicações precedentes, que ela ignorava. Finalmente, a 12 de abril de 1860, em casa do Sr. Dehau, sendo intermediário o Sr. Crozet, médium, essa missão foi novamente confirmada em uma comunicação espontânea, obtida na ausência de Allan Kardec. Assim, também, se deu a respeito do seu pseudônimo. Numerosas comunicações, procedentes dos mais diversos pontos, vieram reafirmar e corroborar a primeira comunicação obtida a esse respeito. Urgido pelos acontecimentos e pelos documentos que tinha em seu poder, Allan Kardec formara, em razão do êxito de O livro dos espíritos, o projeto de criar um jornal espírita. Havia-se dirigido ao Sr. Tiedman, para solicitar-lhe o concurso pecuniário, mas este não estava resolvido a tomar parte nessa empresa. Allan Kardec perguntou aos seus guias, no dia 15 de novembro de 1857, por intermédio da Srta. E. Dufaux, o que deveria fazer. Foi-lhe respondido que pusesse a sua ideia em execução e que não se inquietasse com o resto.
    “Apressei-me em redigir o primeiro número”, diz Allan Kardec, “e o fiz aparecer no dia 1o de janeiro de 1858, sem nada dizer a pessoa alguma. Não tinha um único assinante, nem sócio capitalista. Fi-lo, pois, inteiramente por minha conta e risco, e não tive de que me arrepender, porque o êxito ultrapassou a minha expectativa. A partir de 1o de janeiro, os números se sucederam sem interrupção, e, como o previra o Espírito, esse jornal se me tornou em poderoso auxiliar. Reconheci, mais tarde, que era uma felicidade para mim não ter tido um sócio capitalista, porque estava mais livre, enquanto que um estranho interessado teria pretendido impor-me as suas ideias e a sua vontade e poderia embaraçar-me a marcha. Só, eu não tinha que prestar contas a ninguém, por mais onerosa que, como trabalho, fosse a minha tarefa.” E essa tarefa devia ir sempre crescendo em labor e em responsabilidades, em lutas incessantes contra obstáculos, emboscadas, perigos de toda sorte. À medida, porém, que a lide se tornava mais áspera, esse enérgico trabalhador se elevava, também, à altura dos acontecimentos, que nunca o surpreenderam; e durante onze anos, nessa Revista espírita, que acabamos de ver como começou tão modestamente, ele afrontou todas as tempestades, todas as emulações, todos os ciúmes que não lhe foram poupados, como ele mesmo relata e como lhe fora anunciado ao ser-lhe revelada a sua missão. Essa comunicação e as reflexões de que as anotou Allan Kardec nos mostram, sob um prisma pouco lisonjeiro, a situação naquela época, mas fazem também ressaltar o grande valor do fundador do Espiritismo e o seu mérito em ter sabido triunfar: Médium, Mlle. Aline C. – 12 de junho de 1856:
    P. — Quais são as causas que me poderiam fazer fracassar? Seria a insuficiência das minhas aptidões?
    R. — Não, mas a missão dos reformadores é cheia de escolhos e perigos; a tua é rude; previno-te, porque é ao mundo inteiro que se trata de agitar e de transformar. Não creias que te seja suficiente publicar um livro, dois livros, dez livros, e ficares tranquilamente em tua casa; não, é preciso te mostrares no conflito; contra ti se açularão terríveis ódios, implacáveis
inimigos tramarão a tua perda; estarás exposto à calúnia, à traição, mesmo daqueles que te parecerão mais dedicados; as tuas melhores instruções serão impugnadas e desnaturadas; sucumbirás mais de uma vez ao peso da fadiga;
em uma palavra, é uma luta quase constante que terás de sustentar com o sacrifício do teu repouso, da tua tranquilidade, da tua saúde e mesmo da tua vida, porque tu não viverás muito tempo. Pois bem. Mais de um recua quando, em lugar de uma vereda florida, não encontra sob seus passos senão espinhos, agudas pedras e serpentes. Para tais missões não basta a inteligência. É preciso antes de tudo, para agradar a Deus, humildade, modéstia, desinteresse, porque abatem os orgulhosos e os presunçosos. Para lutar contra os homens, é necessário coragem, perseverança e firmeza inquebrantáveis; é preciso, também, ter prudência e tato para conduzir as coisas a propósito e não comprometer-lhes o êxito por medidas ou palavras intempestivas; é preciso, enfim, devotamento, abnegação, e estar pronto para todos os sacrifícios.
“Vês que a tua missão está subordinada a condições que dependem de ti.” 
Espírito Verdade
Nota (É Allan Kardec que assim se exprime) – “Escrevo esta nota no dia 1o de janeiro de 1867, dez anos e meio depois que esta comunicação me foi dada, e verifico que ela se realizou em todos os pontos, porque experimentei todas as vicissitudes que nela me foram anunciadas. Tenho sido alvo do ódio de implacáveis inimigos, da injúria, da calúnia, da inveja e do ciúme; têm sido publicados contra mim infames libelos; as minhas melhores instruções têm sido desnaturadas; tenho sido traído por aqueles em quem depositara confiança, e pago com a ingratidão por aqueles a quem tinha prestado serviços. A Sociedade de Paris tem sido um contínuo foco de intrigas, urdidas por aqueles que se diziam a meu favor, e que, mostrando-se amáveis em minha presença, me detratavam na ausência. Disseram que aqueles que adotavam o meu partido eram assalariados por mim com o dinheiro que eu arrecadava do Espiritismo. Não mais tenho conhecido o repouso; mais de uma vez, sucumbi; sob o excesso do trabalho, tem-se-me alterado a saúde e comprometido a vida. Entretanto, graças à proteção e à assistência dos bons Espíritos, que sem cessar me têm dado provas manifestas de sua solicitude, sou feliz em reconhecer que não tenho experimentado um único instante de desfalecimento nem de desânimo, e que tenho constantemente prosseguido na minha tarefa com o mesmo ardor, sem me preocupar com a malevolência de que era alvo. Segundo a comunicação do Espírito Verdade, eu devia contar com tudo isso, e tudo se verificou.”
Quando se conhecem todas essas lutas, todas as torpezas de que Allan Kardec foi alvo, quanto ele se engrandece aos nossos olhos e como o seu brilhante triunfo adquire mérito e esplendor! Que se tornaram esses invejosos, esses pigmeus que procuravam obstruir-lhe o caminho? Na maior parte são desconhecidos os seus nomes, ou nenhuma recordação despertam mais: o esquecimento os retomou e sepultou para sempre em suas sombras, ao passo que o de Allan Kardec, o intrépido lutador, o pioneiro ousado, passará à posteridade com a sua auréola de glória tão legitimamente adquirida.
A Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas foi fundada a 1o de abril
de 1858. Até então, as reuniões se realizavam em casa de Allan Kardec, à rua dos Martyrs, com Mlle. E. Dufaux, como principal médium; o seu salão poderia conter de quinze a vinte pessoas. Cedo, aí reuniu ele mais de trinta. Tornando-se, então, esse local muito acanhado e não querendo onerar Allan Kardec com todos os encargos, alguns dos assistentes se propuseram formar uma sociedade espírita e alugar um outro local em que se efetuassem as reuniões. Era preciso, porém, para se poderem reunir, obter o reconhecimento e a autorização da polícia. O Sr. Dufaux, que conhecia pessoalmente o prefeito de polícia de então, encarregou-se de dar os passos para esse fim, e, graças ao ministro do Interior, o general X., que era favorável às novas ideias, a autorização foi obtida em quinze dias, quando pelo processo ordinário teria exigido meses, sem grande probabilidade de êxito. 
“A Sociedade foi, então, regularmente constituída e reunia-se todas as terças-feiras, no local que fora alugado no Palais-Royal, galeria Valois. Aí ficou durante um ano, de 1o de abril de 1858 a 1o de abril de 1859. Não podendo lá permanecer por mais tempo, reunia-se todas as sextas feiras em um dos salões do restaurante Douix, no Palais-Royal, galeria Montpensier, de 1o de abril de 1859 a 1o de abril de 1860, época em que se instalou em sede própria, à rua e passagem Sainte-Anne, no 59.”
    Depois de haver dado conta das condições em que se formou a Sociedade e da tarefa que teve a desempenhar, Allan Kardec assim se exprime
(Revista espírita, julho de 1859):
Dei em minhas funções, que posso dizer laboriosas, toda a exatidão e todo o devotamento
de que fui capaz. Do ponto de vista administrativo, esforcei-me por
manter nas sessões uma ordem rigorosa e lhes dar um caráter de gravidade, sem
o qual o prestígio de assembleia séria logo teria desaparecido. Agora que a minha
tarefa está terminada e que o impulso foi dado, devo comunicar-vos a resolução
que tomei, de futuramente renunciar a qualquer tipo de função na Sociedade,
mesmo a de diretor de estudos. Não ambiciono senão um título: o de simples
membro titular, com o qual me sentirei sempre honrado e feliz. O motivo de
minha determinação está na multiplicidade de meus trabalhos, que aumentam
diariamente pela extensão de minhas relações, considerando-se que, além daqueles
que conheceis,
preparo outros mais consideráveis, que exigem longos e laboriosos
estudos e por certo não absorverão menos de dez anos. Ora, os trabalhos da
Sociedade não deixam de tomar muito tempo, tanto na preparação quanto na
coordenação e na redação final. Além disso, reclamam uma assiduidade por vezes
prejudicial às minhas ocupações pessoais e tornam indispensável a iniciativa quase
exclusiva que me conferistes. É por essa razão, senhores, que tantas vezes tive de
tomar a palavra, lamentando que os membros eminentemente esclarecidos que
possuímos nos privassem de suas luzes. Há muito eu desejava demitir-me das
minhas funções; deixei isso bastante claro em diversas circunstâncias, seja aqui,
seja em particular, a vários de meus colegas, notadamente ao Sr. Ledoyen. Tê-lo-ia
feito mais cedo, sem receio de trazer perturbação à Sociedade, retirando-me ao
meio do ano, mas poderia parecer uma defecção, além do que me veria obrigado
a dar satisfação aos nossos adversários. Tive, pois, de cumprir a minha tarefa até
o fim. Hoje, porém, que tais motivos não mais subsistem, apresso-me em vos dar
parte da minha resolução, a fim de não entravar a escolha que fareis. É justo que
cada um participe dos encargos e das honras.
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Apressemo-nos a acrescentar que essa demissão não foi aceita e que
Allan Kardec foi reeleito por unanimidade, menos um voto e uma cédula
em branco. Diante desse testemunho de simpatia, ele se submeteu e se
conservou em suas funções.
Em setembro de 1860, Allan Kardec fez uma viagem de propaganda
à nossa região, e eis aqui como a ela fez referência na Sociedade Parisiense
de Estudos Espíritas:
“O Sr. Allan Kardec dá conta do resultado da viagem que acaba de
fazer, no interesse do Espiritismo, e felicita-se pela cordialidade do acolhimento
que por toda parte encontrou, especialmente em Sens, Mâcon,
Lyon e Saint-Étienne. Observou, em todo lugar em que se demorou, os
progressos consideráveis da Doutrina; mas o que sobretudo é digno de
nota, é que em parte alguma viu que dela se fizesse um divertimento, mas
que, ao contrário, dela se ocupam de modo sério, e que por toda parte
lhe compreendem o alcance e as consequências futuras. Há, sem dúvida,
muitos adversários, sendo os mais encarniçados os inimigos interessados,
mas os motejadores diminuem sensivelmente; vendo que os seus sarcasmos
não colocam do seu lado os gracejadores, e que auxiliam mais do que
impedem o progresso das novas crenças, começam a compreender que
nada ganham com isso e que consomem o seu espírito em pura perda, e
assim se calam. Uma frase muito característica parece ser em toda parte
a ordem do dia, e é esta: o Espiritismo está no ar; só por si desenha ela o
estado das coisas. Mas é sobretudo em Lyon que são mais notáveis os
resultados. Os espíritas são, aí, numerosos em todas as classes, e na classe
operária contam-se por centenas. A Doutrina Espírita tem exercido sobre
os operários a mais salutar influência, sob o ponto de vista da ordem, da
moral e das ideias religiosas; em resumo, a propagação do Espiritismo
marcha com a mais animadora celeridade.”
No decurso dessa viagem, Allan Kardec pronunciou um discurso
magistral, no banquete realizado a 19 de setembro de 1860, do qual eis
aqui algumas passagens, próprias a nos interessar, a nós que aspiramos a
substituir dignamente esses trabalhadores da primeira hora:
“A primeira coisa que me impressionou foi o número de adeptos;
eu sabia perfeitamente que Lyon os contava em grande escala, mas estava
longe de imaginar que o número fosse tão considerável, porque é por
Biografia de Allan Kardec
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centenas
que eles se contam, e, em pouco tempo — eu o espero —, já se
não poderão contar mais.
Se, porém, Lyon se distingue pelo número, não o faz menos pela qualidade,
o que ainda vale mais. Por toda parte não encontrei senão espíritas
sinceros, compreendendo a Doutrina sob seu verdadeiro ponto de vista.
Há, meus senhores, três categorias de adeptos: uns que se limitam a crer na
realidade das manifestações e que procuram, antes de tudo, os fenômenos;
o Espiritismo é simplesmente para eles uma série de fatos mais ou menos
interessantes. Os segundos veem outra coisa nele além dos fatos, compreendem
o seu alcance filosófico, admiram a moral que deles decorre, mas não
a praticam; para eles, a caridade cristã é uma bela máxima, e nada mais. Os
terceiros, finalmente, não se contentam de admirar a moral: praticam-na e
aceitam-lhe as consequências. Bem convencidos de que a existência terrestre
é uma prova passageira, esforçam-se por aproveitar esses curtos instantes,
para marchar na senda do progresso que lhes traçam os Espíritos, empenhando-
se em fazer o bem e em reprimir as suas más inclinações; as suas
relações são sempre seguras, porque as suas convicções os afastam de todo
pensamento do mal; a caridade é, em toda ocasião, a regra da sua conduta:
são esses os verdadeiros espíritas, ou, melhor, os espíritas cristãos.
Pois bem, meus senhores, eu vo-lo digo com satisfação: ainda não encontrei,
aí, nenhum adepto da primeira categoria; em parte alguma vi que
se ocupassem do Espiritismo por mera curiosidade, com frívolos intuitos;
por toda parte o fim é grave, as intenções são sérias; e, a crer no que me
dizem, há muitos da terceira categoria. Honra, pois, aos espíritas lioneses,
por terem, assim, entrado largamente nessa senda progressista, sem a qual
o Espiritismo não teria objetivo. Este exemplo não será perdido,
terá suas
consequências, e não é sem razão — eu o vejo — que os Espíritos me responderam
noutro dia, por um dos vossos médiuns mais dedicados, posto
que dos mais obscuros, quando eu lhes exprimia a minha surpresa: ‘Por que
te admiras disso? Lyon foi a cidade dos mártires; a fé aí é vivaz; ela fornecerá
apóstolos ao Espiritismo. Se Paris é a cabeça, Lyon será o coração.’”
Essa opinião de Allan Kardec, sobre os espíritas lioneses de sua época,
é para nós uma grande honra, mas deve ser também uma regra de
conduta.
Devemos esforçar-nos por merecer esses elogios, aprofundando
por nossa vez as lições do mestre e, sobretudo, conformando com elas o
Biografia de Allan Kardec
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nosso proceder. Noblesse oblige,8 diz um adágio; saibamo-nos recordar sempre
disso e conservar alto e firme o estandarte do Espiritismo.
Allan Kardec, porém, não se contentava em atirar flores sobre nossos
companheiros; dava-lhes, sobretudo, sábios conselhos, sobre os quais, por
nossa vez, deveremos meditar.
“Vindo dos Espíritos o ensino, os diferentes grupos, tanto como os
indivíduos, se acham sob a influência de certos Espíritos que presidem aos
seus trabalhos, ou os dirigem moralmente. Se esses Espíritos não se acham
de acordo, a questão está em saber qual é o que merece maior confiança;
será, evidentemente, aquele cuja teoria não pode provocar nenhuma objeção
séria, em uma palavra, aquele que, em todos os pontos, dá maior número de
provas de superioridade. Se tudo nesse ensino é bom, racional, pouco importa
o nome que toma o Espírito; e a esse respeito a questão de identidade
é inteiramente secundária. Se, sob um nome respeitável, o ensino peca pelas
qualidades essenciais, podeis imediatamente concluir que é um nome apócrifo
e que é um Espírito impostor ou galhofeiro. Regra geral: o nome nunca
é uma garantia; a única, a verdadeira garantia de superioridade é o pensamento
e a maneira por que é ele expresso. Os Espíritos
enganadores tudo
podem imitar, tudo, exceto o verdadeiro saber e o verdadeiro sentimento.
Acontece muitas vezes que, para fazer adotar certas utopias, alguns
Espíritos fazem alarde de um falso saber e pensam impô-las, escolhendo
no arsenal das palavras técnicas tudo o que pode fascinar aquele que é
facilmente crédulo. Eles têm, ainda, um meio mais certo: é afetar as exterioridades
da virtude; com o auxílio das grandes palavras — caridade,
fraternidade,
humildade — esperam fazer passar os mais grosseiros absurdos
e é o que acontece muitas vezes, quando se não está precavido. É
preciso, pois, evitar o deixar-se seduzir pelas aparências, tanto da parte dos
Espíritos,
quanto da dos homens; ora, eu o confesso, aí está uma das maiores
dificuldades, mas nunca se disse que o Espiritismo fosse uma ciência fácil;
tem seus escolhos que se não podem evitar senão pela experiência. Para
escapar à cilada, é preciso, antes de tudo, fugir ao entusiasmo que cega,
ao orgulho que leva certos médiuns a acreditarem-se os únicos intérpretes
da verdade; é preciso que tudo seja friamente examinado, maduramente
pesado, confrontado,
e, se desconfiamos do próprio julgamento, o que é
muitas vezes mais prudente, é preciso recorrer a outras pessoas, segundo o
8 N.E.: A nobreza obriga.
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provérbio: que quatro olhos veem melhor do que dois. Só um falso amor-
-próprio ou uma obsessão podem fazer persistir em uma ideia notoriamente
falsa e que o bom senso de cada um repele.”
Eis os conselhos tão sábios e tão práticos dados por aqueles que quiseram
fazer passar por um entusiasta, um místico, um alucinado; e essa
regra de conduta, estabelecida no começo, ainda não foi invalidada, nem
pela observação, nem pelos acontecimentos; é sempre a vereda mais segura,
mais prudente, a única a seguir por aqueles que se querem ocupar do
Espiritismo.
Allan Kardec trabalhava, então, em O livro dos médiuns, que apareceu
na primeira quinzena de janeiro de 1861, editado pelos Srs. Didier
& Cia., livreiros-editores. O mestre expõe a sua razão de ser nos seguintes
termos, na Revista espírita:
Fruto de longa experiência e de laboriosos estudos, nesse trabalho procuramos
esclarecer todas as questões que se ligam à prática das manifestações. De acordo
com os Espíritos, contém a explicação teórica dos diversos fenômenos, bem como
das condições em que os mesmos se podem reproduzir. Não obstante, sobretudo
a matéria relativa ao desenvolvimento e ao exercício da mediunidade mereceu de
nossa parte uma atenção toda especial.
O Espiritismo experimental é cercado de muito mais dificuldades do que geralmente
se pensa, e os escolhos aí encontrados são numerosos. É isso que ocasiona
tantas decepções aos que dele se ocupam, sem a experiência e os conhecimentos
necessários. Nosso objetivo foi o de prevenir contra esses escolhos, que nem sempre
deixam de apresentar inconvenientes para quem se aventure sem prudência
por esse novo terreno. Não podíamos negligenciar um ponto tão capital, e o tratamos
com cuidado que a sua importância reclama.
O livro dos médiuns é, ainda, o vade-mécum de quantos se querem
entregar com proveito à prática do Espiritismo experimental; nada apareceu
de melhor nem de mais completo nessa ordem de ideias. É ainda o
mais seguro guia de que nos podemos servir para explorar, sem perigo, o
terreno da mediunidade.
No ano de 1861, Allan Kardec fez uma nova viagem espírita a Sens,
Mâcon e Lyon, e verificou que em nossa cidade o Espiritismo atingira a
maioridade.
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“Com efeito, não é mais por centenas”, diz ele, “que aí se contam os
espíritas, como há um ano; é por milhares, ou, para melhor dizer, já se não
contam, e pode-se calcular que, seguindo a mesma progressão, dentro de
um ano ou dois eles serão mais de trinta mil. O Espiritismo, aí, tem feito
adeptos em todas as classes, mas é sobretudo na classe operária que se tem
propagado com maior rapidez, e isso não é de admirar: sendo essa classe a
que mais sofre, volta-se para o lado que lhe oferece maior consolação. Se
aqueles que clamam contra o Espiritismo lhe oferecessem outro tanto, essa
classe se voltaria para eles; mas, ao contrário, querem tirar-lhe exatamente
aquilo que a ajuda a carregar o seu fardo de miséria. E isto tem sido o meio
mais seguro de perderem as suas simpatias e fazê-la engrossar as nossas fileiras.
O que vimos com os nossos próprios olhos é de tal modo característico
e encerra ensino tão grande, que acreditamos dever consagrar aos operários
a maior parte do nosso relatório.
No ano passado, só havia um único centro de reunião, o dos
Brotteaux,
dirigido por Dijoux, chefe de oficina, e sua mulher; depois,
formaram-se outros em diferentes pontos da cidade: em Guillotière, em
Perrache, em Croix-Rousse, em Vaise, em Saint-Just etc., sem contar grande
número de reuniões particulares. Então, havia apenas dois ou três médiuns
neófitos; hoje os há em todos os grupos e muitos são de primeira
ordem; em um só grupo vimos cinco escreverem simultaneamente. Vimos,
igualmente, um rapaz muito bom médium vidente, no qual pudemos verificar
essa faculdade desenvolvida no mais alto grau.
Sem dúvida, muito é para desejar que se multipliquem os adeptos,
mas o que mais vale ainda do que o número é a qualidade. Pois bem, declaramo-
lo bem alto: não vimos, em parte alguma, reuniões espíritas mais
edificantes do que as dos operários lioneses, quanto à ordem, ao recolhimento
e à atenção que prestam às instruções dos seus guias espirituais; há
homens, velhos, senhoras, jovens, crianças mesmo, cuja atitude respeitosa
contrasta com a sua idade; jamais uma única criança perturbou por instantes
o silêncio das nossas reuniões, muitas vezes longas; pareciam quase tão
ávidas quanto seus pais, em recolher as nossas palavras.
Isto, porém, não é tudo: o número das metamorfoses morais é,
entre os operários, quase tão grande quanto o dos adeptos: hábitos viciosos
reformados, paixões acalmadas, ódios apaziguados, lares tornados tranquilos,
em uma palavra, as mais legítimas virtudes cristãs desenvolvidas, e isso pela
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confiança, de agora em diante inabalável, que lhes dão as comunicações espíritas,
no futuro em que não acreditavam; é uma felicidade para eles assistirem
a essas instruções, de que saem reconfortados contra a adversidade; muitos
chegam a galgar mais de uma légua, sob qualquer tempo, inverno ou verão,
tudo arrostando para não faltarem a uma sessão; é que neles não há a fé vulgar,
mas a baseada sobre uma convicção profunda, raciocinada, e não cega.”
Por ocasião dessa viagem, um banquete novamente reuniu sob a
presidência de Allan Kardec os membros da grande família espírita lionesa.
No dia 19 de setembro de 1860 os convivas eram apenas uns trinta; a
19 de setembro de 1861 o número era de cento e sessenta, “representando
os diferentes grupos, que se consideram todos como membros de uma
grande família, entre os quais não existe sombra de ciúme e de rivalidade,
o que — diz o mestre —, temos, de passagem, grande satisfação em registrar.
A maioria dos assistentes era composta de operários e toda gente
notou a perfeita ordem que não cessou de reinar um só instante. É que
os verdadeiros espíritas põem sua satisfação nas alegrias do coração, e não
nos prazeres ruidosos”.
A 14 de outubro do mesmo ano encontramos Allan Kardec em
Bordeaux,
onde, como em todas as cidades por que passava, semeava a Boa
Nova e fazia germinar a fé no futuro.
Além das viagens e dos trabalhos de Allan Kardec, esse ano de 1861
permanecerá memorável nos anais do Espiritismo por um fato de tal modo
monstruoso que quase parece incrível. Refiro-me ao auto de fé levado a
efeito em Barcelona, e em que foram queimadas pela fogueira dos inquisidores
trezentas obras espíritas.
O Sr. Maurício Lachâtre estava nessa época estabelecido como livreiro,
em Barcelona, em relações e em comunhão de ideias com Allan
Kardec. Assim, pediu a este que lhe enviasse certo número de obras espíritas,
para as expor à venda e fazer propaganda da nova filosofia.
Essas obras, em número de trezentas aproximadamente, foram
expedidas nas condições ordinárias, com uma declaração em ordem do
conteúdo das caixas. À sua chegada à Espanha, foram os direitos da alfândega
cobrados ao destinatário e arrecadados pelos agentes do governo
espanhol, mas a entrega das caixas não se fez: o bispo de Barcelona, tendo
julgado esses livros perniciosos à fé católica, fez confiscar a expedição pelo
Santo Ofício.
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Uma vez que não queriam entregar essas obras ao destinatário, Allan
Kardec reclamou a sua devolução, mas a sua reclamação foi de nulo efeito,
e o bispo de Barcelona, erigindo-se em policiador da França, fundamentou
a sua recusa com a seguinte resposta: “A Igreja Católica é universal, e
sendo esses livros contrários à fé católica, o governo não pode consentir
que eles passem a perverter a moral e a religião de outros países.”
E não somente esses livros não foram restituídos, mas também os
direitos aduaneiros ficaram em poder do fisco espanhol. Allan Kardec poderia
promover uma ação diplomática e obrigar o governo espanhol a
efetuar o retorno das obras. Os Espíritos, porém, o dissuadiram disso,
dizendo que era preferível para a propaganda do Espiritismo deixar essa
ignomínia seguir o seu curso.
Renovando os fastos e as fogueiras da Idade Média, o bispo de
Barcelona
fez queimar em praça pública, pela mão do carrasco, as obras
incriminadas.
Eis aqui, a título de documento histórico, o processo verbal dessa
infâmia clerical:
“Aos nove dias de outubro de 1861, às 10h30min da manhã, na esplanada
da cidade de Barcelona, no lugar em que são executados os criminosos
condenados à pena última, por ordem do bispo desta cidade foram
queimados trezentos volumes e brochuras sobre o Espiritismo, a saber:
A Revista espírita, diretor Allan Kardec;
A Revista espiritualista, diretor Piérart;
O livro dos espíritos, por Allan Kardec;
O livro dos médiuns, pelo mesmo;
O que é o espiritismo, pelo mesmo;
Fragmento de sonata, ditado pelo Espírito Mozart;
Carta de um católico sobre o espiritismo, pelo Doutor Grand;
A história de Joana d’Arc, por ela mesma ditada a Mlle. Ermance
Dufaux;
A realidade dos Espíritos demonstrada pela escrita direta, pelo Barão de
Guldenstubbè.
Assistiram ao auto de fé:
Um padre revestido de hábitos sacerdotais, trazendo em uma das
mãos a cruz e, na outra, uma tocha;
Um tabelião encarregado de redigir o processo verbal do auto de fé;
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O escrevente do tabelião;
Um empregado superior da administração das alfândegas;
Três mozos9 da alfândega, encarregados de alimentar o fogo;
Um agente da alfândega, representando o proprietário das obras
condenadas pelo bispo;
Uma multidão incalculável aglomerava-se nos passeios e cobria a esplanada
em que ardia a fogueira.
Quando o fogo consumiu os trezentos volumes e brochuras espíritas,
o padre e os seus ajudantes se retiraram cobertos pelos apupos e as
maldições dos numerosos assistentes, que gritavam: ‘Abaixo a Inquisição!’
Em seguida muitas pessoas se acercaram da fogueira e apanharam
cinzas.”
Seria diminuir o horror de tais atos, acompanhá-los com a narrativa
dos comentários; constatemos somente que ao clarão dessa fogueira o
Espiritismo
tomou um incremento inesperado em toda a Espanha e, como
o haviam os Espíritos previsto, conquistou, aí, um número incalculável
de adeptos. Só podemos, pois, como o fez Allan Kardec, alegrar-nos com
o grande reclamo que esse ato odioso operou em favor do Espiritismo.
A propósito, porém, da propaganda que nós mesmos devemos fazer da
nossa filosofia, nunca deveremos esquecer estes conselhos do mestre
(
Revista espírita, dezembro de 1863):
[...] “O Espiritismo se dirige aos que não creem ou que duvidam, e não aos que
têm uma fé e aos quais esta fé basta; que não diz a ninguém que renuncie às
suas crenças para adotar as nossas”, e nisto ele é consequente com os princípios
de tolerância e de liberdade de consciência que professa. Por este motivo não
poderíamos aprovar as tentativas feitas por certas pessoas, para converter às nossas
ideias o clero de qualquer comunhão. Repetiremos, pois, a todos os espíritas:
acolhei prontamente os homens de boa vontade; dai luz aos que a buscam, pois
não tereis êxito com os que julgam possuí-la; não violenteis a fé de ninguém, nem
a do clero, nem a dos laicos, já que vindes semear em campo árido; ponde a luz em
evidência, a fim de que a vejam os que quiserem ver; mostrai os frutos da árvore e
dai a comer aos que têm fome, e não aos que se dizem fartos. [...]
Estes conselhos, como todos os de Allan Kardec, são claros, simples
e sobretudo práticos; cumpre que deles nos recordemos e os aproveitemos
oportunamente.
9 N.E.: Termo em espanhol que significa moço, jovem; empregado, criado.
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O ano de 1862 foi fértil em trabalhos favoráveis à difusão do Espiritismo.
No dia 15 de janeiro apareceu a pequenina e excelente brochura de
propaganda: O espiritismo na sua expressão mais simples. “O fim desta publicação”,
diz Allan Kardec, “é apresentar, em quadro muito resumido, um
histórico do Espiritismo e uma ideia suficiente da Doutrina dos Espíritos,
para permitir ser compreendido o seu fim moral e filosófico. Pela clareza e
simplicidade do estilo, procuramos pô-lo ao alcance de todas as inteligências.
Contamos com o zelo de todos os verdadeiros espíritas, para que lhe
auxiliem a propagação.” — Este apelo foi ouvido, porque a pequena brochura
se espalhou em profusão, devendo muitos a esse excelente trabalho o
terem compreendido o fim e o alcance do Espiritismo.
Tendo os nossos predecessores no Espiritismo transmitido a Allan
Kardec, por ocasião do Ano-Novo, a expressão dos seus sentimentos de
gratidão, eis aqui como respondeu o mestre a esse testemunho de simpatia:
“Meus caros irmãos e amigos de Lyon:
A manifestação coletiva que tivestes a bondade de transmitir-me,
por ocasião do Ano-Novo, produziu-me vivíssima satisfação, provando-me
que conservastes de mim uma boa recordação, mas o que me causou maior
prazer, nesse ato espontâneo de vossa parte, foi encontrar, entre as numerosas
assinaturas que nele figuram, representantes de quase todos os grupos,
porque é um sinal da harmonia que reina entre eles. Sou feliz por ver que
compreendestes perfeitamente o fim dessa organização, cujos resultados
desde já podeis apreciar, porque deve ser agora evidente para vós que uma
sociedade única seria quase impossível.
Agradeço, meus bons amigos, os votos que fazeis por mim; eles me
são tanto mais agradáveis quanto sei que partem do coração, e são os que
Deus atende. Ficai, pois, satisfeitos, porque Ele os ouve todos os dias,
proporcionando-me a extraordinária satisfação no estabelecimento de uma
nova Doutrina, de ver aquela a que me tenho dedicado engrandecer e prosperar,
em minha vida, com uma rapidez maravilhosa; considero um grande
favor do Céu ser testemunha do bem que ela já produz.
Esta certeza, de que recebo diariamente os mais tocantes testemunhos,
me paga com usura todos os meus sofrimentos, todas as minhas fadigas; não
peço a Deus senão uma graça, e é a de dar-me a força física necessária para
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ir até o fim da minha tarefa, que longe se encontra de estar concluída, mas,
como quer que suceda, possuirei sempre a maior consolação,
pela certeza de
que a semente das ideias novas, espalhada agora por toda parte, é imperecível;
mais feliz que muitos outros, que não trabalharam senão para o futuro,
é-me permitido contemplar os primeiros frutos.
Se alguma coisa lamento, é que a exiguidade dos meus recursos pessoais
me não permita pôr em execução os planos que concebi para um
avanço ainda mais rápido; se Deus, porém, em sua sabedoria, entendeu
dispor de modo diferente, legarei esses planos aos nossos sucessores, que,
sem dúvida, serão mais felizes. A despeito da escassez dos recursos materiais,
o movimento que se opera na opinião ultrapassou toda a expectativa;
crede, meus irmãos, que nisso o vosso exemplo não terá sido sem influência.
Recebei, portanto, as nossas felicitações pela maneira por que sabeis
compreender e praticar a Doutrina.
No ponto a que hoje chegaram as coisas, e tendo em vista a marcha
do Espiritismo através dos obstáculos semeados em seu caminho, pode
dizer-se que as principais dificuldades estão superadas; ele conquistou o seu
lugar e está assente sobre bases que de ora em diante desafiam os esforços
dos seus adversários.
Perguntam como uma Doutrina, que torna feliz e melhor, pode ter
inimigos; é natural; o estabelecimento das melhores coisas choca sempre
interesses, ao começar. Não tem acontecido assim com todas as invenções e
descobertas que têm revolucionado a indústria? As que hoje são consideradas
como benefícios, sem as quais não se poderia mais passar, não tiveram
inimigos obstinados? Toda lei que reprime um abuso não tem contra si
todos os que vivem dos abusos? Como quereríeis que uma Doutrina que
conduz ao reino da caridade efetiva não fosse combatida por todos os que
vivem no egoísmo? E sabeis que são eles numerosos na Terra!
No começo contaram sepultá-la com a zombaria; hoje veem que
essa arma é impotente e que, sob o fogo dos sarcasmos, ela prosseguiu o
seu caminho sem tropeçar. Não acrediteis que se confessem vencidos; não,
o interesse material é tenaz. Reconhecendo que é uma potência com que
é necessário de hoje em diante contar, vão dirigir-lhe assaltos mais sérios,
mas que só servirão para melhor atestar a fraqueza deles. Uns a atacarão diretamente
por palavras e atos, e a perseguirão até na pessoa dos seus adeptos,
que eles se esforçarão por desalentar a poder de embaraços, enquanto
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que outros, secretamente e por caminhos disfarçados, procurarão miná-la
surdamente.
Ficai prevenidos de que a luta não está terminada; fui avisado de que
eles vão tentar um supremo esforço. Não tenhais, porém, receio: o penhor
da vitória está nesta divisa, que é a de todos os verdadeiros espíritas: Fora
da caridade não há salvação. Arvorai-a bem alto, porque ela é a cabeça de
Medusa para os egoístas.
A tática, posta já em prática pelos inimigos dos espíritas, mas que
eles vão empregar com novo ardor, é tentar dividi-los criando sistemas
divergentes e suscitando entre eles a desconfiança e o ciúme. Não vos deixeis
cair no laço, e tende como certo que quem quer que procure um
meio, qualquer que seja, para quebrar a boa harmonia, não pode ter boa
intenção. É por isso que vos recomendo useis da maior circunspeção na
formação dos vossos grupos, não somente para vossa tranquilidade, como
no próprio interesse dos vossos labores.
A natureza dos trabalhos espíritas exige calma e recolhimento. Ora,
não há recolhimento possível se se está preocupado com discussões e com
a manifestação de sentimentos malévolos. Não haverá sentimentos malévolos
se houver fraternidade; não pode, porém, haver fraternidade em
egoístas,
ambiciosos e orgulhosos. Entre orgulhosos, que se suscetibilizam
e ofendem por tudo, ambiciosos que se sentirão mortificados se não
tiverem
a supremacia, egoístas que não pensam senão em si, a cizânia não
pode tardar a introduzir-se, e com ela a dissolução. É o que desejariam os
nossos inimigos, e é o que eles procuram fazer.
Se um grupo quer estar em condições de ordem, de tranquilidade e
de estabilidade, é preciso que nele reine o sentimento fraternal. Todo grupo
ou sociedade que se formar, sem ter caridade efetiva por base, não tem vitalidade;
enquanto que aqueles que forem fundados de acordo com o verdadeiro
espírito da Doutrina olhar-se-ão como membros de uma mesma
família que, não sendo possível habitarem todos sob o mesmo teto, moram
em lugares diferentes. A rivalidade entre eles seria um contrassenso; ela não
poderia existir onde reina a verdadeira caridade, porque a caridade não se
pode entender de duas maneiras.
Reconhecei, pois, o verdadeiro espírita na prática da caridade por
pensamentos, palavras e obras, e persuadi-vos de quem quer que nutra em
sua alma sentimentos de animosidade, de rancor, de ódio, de inveja ou de
Biografia de Allan Kardec
33
ciúme, mente a si próprio se tem a pretensão de compreender e praticar
o Espiritismo.
O egoísmo e o orgulho matam as sociedades particulares, como matam
os povos e a sociedade em geral...”
Tudo mereceria citação nestes conselhos, tão justos quão práticos, mas
é preciso que nos limitemos, em razão do tempo de que podemos dispor.
A pedido dos espíritas de Lyon e de Bordeaux, Allan Kardec fez, em
setembro e outubro, uma longa viagem de propaganda semeando por toda
parte a boa-nova e prodigalizando conselhos, mas somente aos que lhos pediam;
o convite feito pelos grupos lioneses estava subscrito por quinhentas
assinaturas. Uma publicação especial deu conta dessa viagem de mais de seis
semanas durante a qual o mestre presidiu a mais de cinquenta reuniões em
vinte cidades, onde por toda parte foi alvo do mais cordial acolhimento e se
sentiu feliz por verificar os imensos progressos do Espiritismo.
A respeito das viagens de Allan Kardec, como certas influências hostis
houvessem espalhado o boato de que eram feitas a expensas da Sociedade
Parisiense de Estudos Espíritas, sobre cujo orçamento igualmente ele
sacava de antemão todos os seus gastos de correspondência e de manutenção,
o mestre rebateu, assim, essa falsidade:
Várias pessoas, sobretudo na província, haviam pensado que os gastos com essas
viagens corriam por conta da Sociedade de Paris. Vimo-nos forçados a refutar
esse erro quando a ocasião se apresentou. Aos que pudessem ainda partilhar dessa
opinião, lembramos o que foi dito em outra circunstância (número de junho de
1862), que a Sociedade se limita a prover as despesas correntes e não possui reservas.
Para que pudesse formar um capital, teria de visar o número; é o que não faz,
nem quer fazer, pois seu objetivo não é a especulação e o número nada acrescenta à
importância de seus trabalhos. Sua influência é toda moral e o caráter de suas reuniões
dá aos estranhos a ideia de uma assembleia grave e séria. Eis o seu mais poderoso
meio de propaganda. Assim, não poderia ela custear semelhante despesa. Os
gastos de viagem, como todos os necessários às nossas relações com o Espiritismo,
são cobertos por nossos recursos pessoais e por nossas economias, acrescidos do
produto de nossas obras, sem o que nos seria impossível acudir a todas as despesas
consequentes à obra que empreendemos. Dizemos isto sem vaidade, unicamente
em homenagem à verdade e para edificação dos que imaginam que entesouramos.
(Revista espírita, novembro de 1862.)
Biografia de Allan Kardec
34
Em 1862 Allan Kardec fez também aparecer uma Refutação às críticas
contra o espiritismo no ponto de vista do materialismo, da ciência e da religião.10
Em abril de 1864 publicou a Imitação do evangelho segundo o espiritismo,
com a explicação das máximas morais do Cristo, sua aplicação e sua
concordância com o Espiritismo. O título dessa obra foi depois modificado,
e é hoje O evangelho segundo o espiritismo.
Aproveitando-se da época das férias, Allan Kardec fez em setembro
de 1864 uma viagem a Antuérpia e a Bruxelas. Expondo aos espíritas belgas
o seu modo de ver acerca dos grupos e sociedades espíritas, recorda o que já
havia dito em Lyon, em 1861: “Vale mais, portanto, haver em uma cidade
cem grupos de dez a vinte adeptos, em que nenhum se arrogue a supremacia
sobre os outros, do que uma única sociedade que a todos reunisse. Esse
fracionamento em nada pode prejudicar a unidade dos princípios, desde
que a bandeira é uma só e que todos se dirigem para um mesmo fim.”
As sociedades numerosas têm sua razão de ser sob o ponto de vista
da propaganda, mas, quanto aos estudos sérios e continuados, é preferível
constituírem-se grupos íntimos.
No dia 1o de agosto de 1865, Allan Kardec fez aparecer uma nova
obra — O céu e o inferno ou a Justiça divina segundo o espiritismo, na qual
são mencionados numerosos exemplos da situação dos Espíritos, no mundo
espiritual e na Terra, e as razões que motivaram essa situação.
Os admiráveis êxitos do Espiritismo, seu desenvolvimento quase incrível,
criaram-lhe inúmeros inimigos e, à proporção que ele se foi engrandecendo,
aumentou, também, a tarefa de Allan Kardec. O mestre possuía
uma vontade de ferro, um poder de combatividade extraordinários; era
um trabalhador infatigável; de pé, em qualquer estação, desde às 4h30min,
respondia a tudo, às polêmicas veementes dirigidas contra o Espiritismo,
contra ele próprio, às numerosas correspondências que lhe eram dirigidas;
atendia à direção da Revista espírita e da Sociedade Parisiense de Estudos
Espíritas, à organização do Espiritismo e ao preparo das suas obras.
Esse excesso físico e intelectual esgotou-lhe o organismo, e repetidas
vezes os Espíritos precisam chamá-lo à ordem, a fim de obrigá-lo a poupar
a saúde. Ele, porém, sabe que não deve durar mais que uns dez anos ainda:
10 N.E.: Allan Kardec, no livro Viagem espírita em 1862, revela ter desistido da ideia de publicar o opúsculo
que anunciara um ano antes (Revista espírita, dezembro de 1861) e que seria intitulado Refutação às
críticas contra o espiritismo no ponto de vista do materialismo, da ciência e da religião.
Biografia de Allan Kardec
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numerosas
comunicações o preveniram desse termo e lhe anunciaram mesmo
que a sua tarefa não seria concluída senão em nova existência, que sucederia
a breve trecho à sua próxima desencarnação; por isso ele não quer perder
ocasião alguma de dar ao Espiritismo tudo o que pode, em força e vitalidade.
Em 1867 faz uma curta viagem a Bordeaux, Tours e Orléans; em
seguida põe novamente mãos à obra, para publicar, em janeiro de 1868, A
gênese, os milagres e as predições segundo o espiritismo. É das mais importantes
esta obra, porque constitui, sob o ponto de vista científico, a síntese dos
quatro primeiros volumes já publicados.
Allan Kardec ocupa-se, em seguida, de um projeto de organização
do Espiritismo, por meio do qual espera imprimir mais vigor, mais ação à
filosofia de que se fez apóstolo, procurando desenvolver-lhe o lado prático
e fazer-lhe produzir seus frutos. O objeto constante das suas preocupações
é saber quem o substituirá em sua obra, porque sente que o desenlace está
próximo; e a constituição que elabora tem precisamente por fim prover às
necessidades futuras da Doutrina Espírita.
Desde os primeiros anos do Espiritismo, Allan Kardec havia comprado,
com o produto das suas obras pedagógicas, 2.666 m2 de terreno
na avenida Ségur, atrás dos Inválidos. Tendo essa compra esgotado os seus
recursos, ele contraiu com o Crédit Foncier um empréstimo de 50.000
francos para fazer construir nesse terreno seis pequenas casas, com jardim;
alimentava a doce esperança de recolher-se a uma delas, na Vila Ségur,
e torná-la-ia, depois da sua morte, asilo, a que se pudessem recolher na
velhice os defensores indigentes do Espiritismo.
Em 1869 a Sociedade Espírita era reconstituída e tornada sociedade
anônima, com o capital de 40.000 francos, dividido em quarenta ações,
para a exploração da livraria, da Revista espírita e das obras de Allan Kardec.
A nova sociedade devia instalar-se no dia 1o de abril, à rua de Lille, no 7.
Allan Kardec, cujo contrato de arrendamento na passagem Sainte-
-Anne estava quase a terminar, contava retirar-se para a Vila Ségur, a fim
de trabalhar mais ativamente nas obras que lhe restava fazer e cujo plano e
documentos se achavam já reunidos. Estava, pois, em todos os preparativos
de mudança de domicílio, quando a 31 de março a doença de coração
que o minava surdamente pôs termo à sua robusta constituição e, como
um raio, o arrebatou à afeição dos seus discípulos. Essa perda foi imensa
para o Espiritismo, que via desaparecer o seu fundador e mais poderoso
Biografia de Allan Kardec
36
propagandista, e lançou em profunda consternação todos os que o haviam
conhecido e amado.
Hippolyte-Léon-Denizard Rivail — Allan Kardec — faleceu em
Paris,
rua e passagem Sainte-Anne, 59, 2a circunscrição e mairie de la
Banque,
em 31 de março de 1869, com 65 anos, sucumbindo da ruptura
de um aneurisma.
Unânimes sentimentos acolheram a dolorosa notícia, e numerosíssima
concorrência acompanhou ao Père-Lachaise,11 sua derradeira morada,
os despojos mortais daquele que fora Allan Kardec, daquele que,
através dos tempos, brilhará como um meteoro fulgurante na aurora do
Espiritismo.
Quatro orações foram proferidas à beira do túmulo do mestre:
a primeira, pelo Sr. Levent, em nome da Sociedade Espírita de Paris; a
segunda, pelo Sr. Camille Flammarion, que não fez somente um esboço
do caráter de Allan Kardec e do papel que cabe aos seus trabalhos
no movimento
contemporâneo,
mas ainda, e sobretudo, um exame da
situação
das ciências físicas, no ponto de vista do mundo invisível, das
forças naturais desconhecidas, da existência da alma e da sua indestrutibilidade.
Em seguida, tomou a palavra o Sr. Alexandre Delanne, em nome
dos espíritas dos centros afastados; e, depois, o Sr. E. Muller, em nome da
família e dos seus amigos, dirigiu ao morto querido os últimos adeuses.
A senhora Allan Kardec tinha 74 anos por ocasião da morte de seu
esposo. Sobreviveu-lhe até 1883, ano em que, a 21 de janeiro, se extinguiu,
com 89 anos, sem herdeiros diretos.
Erraria quem acreditasse que, em virtude dos seus trabalhos, Allan
Kardec devia ser uma personagem sempre fria e austera. Não era, entretanto,
assim. Esse grave filósofo, depois de haver discutido pontos
mais difíceis da Psicologia e da Metafísica transcendental, mostrava-se
expansivo, esforçando-se por distrair os convidados que ele frequentemente
recebia na Vila Ségur; conservando-se sempre digno e sóbrio em
suas expressões, sabia adubá-las com o nosso velho sal gaulês em rasgos de
causticante e afetuosa bonomia. Gostava de rir com esse belo riso franco,
largo e comunicativo, e possuía um talento todo particular em fazer os
outros partilharem do seu bom humor.
11 N.E.: Ver Reformador de abril de 1957, p. 93.
Biografia de Allan Kardec
37
Todos os jornais da época se ocuparam da morte de Allan Kardec e
procuraram medir-lhe as consequências. Eis aqui, a título de lembrança,
o que a esse respeito escrevia o Sr. Pagès de Noyez, no Journal de Paris, de
3 de abril de 1869:
Aquele que por tão longo tempo ocupou o mundo científico e religioso sob o
pseudônimo de Allan Kardec, chamava-se Rivail e morreu na idade de 65 anos.
Vimo-lo deitado num simples colchão, no meio da sala das sessões a que há tantos
anos ele presidia; vimo-lo com o semblante calmo como se extinguem aqueles a
quem a morte não surpreende e que, tranquilos quanto ao resultado de uma vida
honesta e laboriosamente preenchida, imprimem como que um reflexo da pureza
de sua alma sobre o corpo que abandonaram.
Resignados pela fé em uma vida melhor, e pela convicção da imortalidade da alma,
inúmeros discípulos tinham vindo lançar um derradeiro olhar àqueles lábios descorados
que, ainda na véspera, lhes falavam a linguagem da Terra. Mas eles recebiam já
a consolação de além-túmulo: o Espírito Allan Kardec veio dizer-lhes quais haviam
sido as suas comoções, quais as suas primeiras impressões, quais, dos que o haviam
precedido no além-túmulo, tinham vindo ajudar-lhe a alma a desprender-se da matéria.
Se “o estilo é o homem”, aqueles que conheceram Allan Kardec em vida não
podem deixar de ficar emocionados pela autenticidade dessa comunicação espírita.
A morte de Allan Kardec é notável por uma coincidência estranha. A Sociedade
fundada por esse grande vulgarizador do Espiritismo acabava de desaparecer.
Abandonado o local, retirados os móveis, nada mais restava de um passado que
devia renascer sobre novas bases. No fim da última sessão, o presidente fizera as
suas despedidas; preenchida a sua missão, retirava-se da luta cotidiana, para se
consagrar inteiramente ao estudo da Filosofia espiritualista. Outros, mais jovens
— intrépidos — deveriam continuar a obra e, fortes por sua virilidade, impor a
verdade por sua convicção.
Para que referir os detalhes da morte? Que importa o modo por que se partiu o
instrumento, e por que consagrar uma linha a esses fragmentos de ora em diante
mergulhados no turbilhão imenso das moléculas? Allan Kardec morreu na sua
hora própria. Com ele terminou o prólogo de uma religião vivaz, que, irradiando
todos os dias, cedo terá iluminado toda a humanidade. Ninguém melhor que
ele podia conduzir a bom termo essa obra de propaganda, à qual era necessário
sacrificar as longas vigílias que alimentam o espírito, a paciência que educa com
o correr do tempo, a abnegação que afronta a estultícia do presente, para não ver
senão a irradiação do futuro.
Biografia de Allan Kardec
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Allan Kardec terá, com suas obras, fundado o dogma pressentido pelas mais antigas
sociedades. Seu nome, apreciado como o de um homem de bem, está há muito
tempo vulgarizado pelos que creem e pelos que receiam. É difícil praticar o bem sem
chocar os interesses estabelecidos. O Espiritismo destrói muitos abusos, reanima muitas
consciências doloridas, dando-lhes a certeza da prova e a consolação do futuro.
Os espíritas choram hoje o amigo que os deixa, porque o nosso entendimento, por
assim dizer, material, não se pode submeter a essa ideia de transição; pago, porém, o
primeiro tributo a essa inferioridade do nosso organismo, o pensador ergue a cabeça
e através desse mundo invisível, que ele sente existir além do túmulo, estende a mão
ao amigo, que já não existe, convencido de que o seu Espírito nos protege sempre.
O presidente da Sociedade Espírita de Paris está morto, mas o número de adeptos
cresce todos os dias, e os corajosos, os quais pelo respeito ao mestre se deixavam ficar
no segundo plano, não hesitarão em se evidenciarem, por bem da Grande Causa.
Esta morte, que o vulgo deixará passar indiferente, não deixa de ser, por isso, um
grande fato para a humanidade. Não é mais o sepulcro de um homem, é a pedra
tumular enchendo esse imenso vácuo que o materialismo cavara aos nossos pés e
sobre o qual o Espiritismo esparge as flores da esperança.
Um ponto sobre o qual não atraí a vossa atenção, mas que devo assinalar,
é a caridade verdadeiramente cristã de Allan Kardec; dele se pode dizer
que a mão esquerda ignorou sempre o bem que fazia a direita, e que esta ainda
menos conheceu os botes que à outra atiravam aqueles para quem o reconhecimento
é um fardo excessivamente pesado. Cartas anônimas, insultos,
traições, difamações sistemáticas, nada foi poupado a esse intrépido lutador,
a essa alma grande e varonil que penetrou integralmente na imortalidade.
O despojo mortal de Allan Kardec repousa no Père-Lachaise, em
Paris, sob modesta lápide erigida pela piedade dos seus discípulos; é aí
que se reúnem todos os anos, desde 1869,12 os adeptos que têm guardado
fidelidade à memória do mestre e conservam preciosamente no coração o
culto da saudade.
E já que um sentimento análogo nos reúne hoje, repitamos bem
alto, minhas senhoras, meus senhores:
Honra! Honra e glória a Allan Kardec!13

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